Repertório Sociocultural | Florestan Fernandes

 
Florestan Fernandes
(1920 - 1995)

Florestan Fernandes cumpre um papel fundador: é correntemente atribuído a ele o estabelecimento da sociologia como uma ciência no Brasil, fazendo avançar a reflexão e a sistematização do conhecimento sobre a sociedade brasileira. Sua atuação na Universidade de São Paulo (USP) foi central para a institucionalização da pesquisa sociológica e para a maturação da ideia de produção coletiva nas ciências sociais. Florestan não era, claro, o único pesquisador a produzir esse tipo de ciência no Brasil ou na USP, mas sua atuação marcou a vida intelectual de São Paulo e do país. Antonio Candido sintetiza da seguinte forma o papel por ele representado:

[Florestan] mostrou pelo exemplo que o trabalho do cientista se desdobra pelo trabalho de outros cientistas; e que para tanto é preciso ter um plano, sistematização, esforço organizado de grupo, senso dos problemas – culminando, em seu caso, pelo senso imperioso do dever social e político.

. . .

A integração do negro na sociedade de classes (1964) revela uma profunda identificação pessoal de Florestan Fernandes com as dores e os sofrimentos dos trabalhadores e marginalizados. Uma identificação que se mostra em detalhes, como o extremo cuidado de Florestan na definição do “objeto de estudo” do livro. O autor, por exemplo, mostra seu desconforto com as denominações “preto” e “população de cor”, sempre colocadas entre aspas, porque sabidamente passíveis de manipulação política e ideológica por brancos e negros, dominadores e dominados, na batalha cotidiana e muitas vezes mesquinha do dia a dia. Não apenas isso, em vários momentos do livro, há uma aproximação entre casos narrados e relatos autobiográficos que Florestan fará nas décadas de 1970 e 1980. A expressão “círculo de ferro” e seu sentido, por exemplo, usados para explicar a resistência de parte dos negros à ascensão social de seus pares, devido ao temor de  que essa ascensão levasse à separação ou ao distanciamento em relação à família e aos amigos mais próximos, reaparecerão em relatos autobiográficos de Florestan. Baseado na própria experiência pessoal de marginalizado, de criança que não conheceu o pai e começou a trabalhar muito cedo, morador de bairros pobres em que conviviam negros e italianos, como o Bexiga, Florestan parece ter compreendido de forma profundamente empática as privações que a “população de cor” de São Paulo sofria. O caso extremo dessa identificação fica por conta do relato do caso do menino Clayton: “Certa matrona, de família com belo renome, tinha por hábito chamar por Clemente os moleques de recado (em regra, pretos). Uma ocasião, um desses rapazes foi à sua casa, para prestar-lhe um serviço. Ela indagou: ‘Como é que você se chama?’, ‘Clayton...’, ‘Isso não é nome de negro! Você se chama é Clemente!’ E designou-o, sempre, por esse nome”, escreve Florestan. O relato é praticamente o mesmo que Florestan contaria como sendo a sua própria história, que teria ganho o nome de “Vicente” para substituir o nome “alemão” Florestan pela madrinha Hermínia Bresser. Cabe aqui especular o que teria levado Florestan a emular na obra uma experiência pessoal – ou, por outra, imaginar o quanto o estudioso, que não era negro, mas também não tinha nenhuma informação sobre quem era seu pai (apenas no final da vida a mãe lhe disse que o pai chamava-se Giuliano Solia), se sentia igualmente marginalizado na sociedade de classes ou mesmo um descendente, ainda que distante, por parte de pai, negro, a ponto de incorporar à sua narrativa de vida um episódio ocorrido com outra criança. Mas também é possível imaginar que uma história semelhante à sua tenha sido narrada a um dos pesquisadores envolvidos no projeto, e na hora de dar nomes fictícios à narrativa, por respeito aos envolvidos, ele tenha optado por estes – Clayton e Clemente – que lembravam a própria experiência, a de um Florestan que vira Vicente.

Essas digressões, ao mesmo tempo biográficas e acadêmicas, buscam mostrar como sua obra não se limita, portanto, àquilo que escreveu: o “modo de fazer”, o trabalho coletivo e o rigor científico se expressam também na capacidade de conceber pesquisas e interpretações que tenham impacto social e político, características que deixarão marcas no pensamento sociológico do país. Há, combinado a isso, um componente que o sociólogo Wright Mills chamou de “imaginação sociológica”, e está enraizado nos trabalhos não apenas de Florestan, mas daquilo que se convencionou chamar de “escola paulista de sociologia”: a compreensão de que os destinos individuais estão condicionados pelas estruturas sociais, de que a narrativa particular não pode ser entendida fora de sua relação com a sociedade. Para Mills, “ter consciência da ideia da estrutura social e utilizá-la com sensibilidade é ser capaz de identificar as ligações entre uma grande variedade de ambientes de pequena escala. Ser capaz de usar isso é possuir a imaginação sociológica”.

"A revolução burguesa no Brasil" (1974)

Nessa obra, Florestan expõe como o processo de modernização capitalista do país, especialmente a partir do final do século XIX, foi, ao mesmo tempo, progressista e perverso. A questão de fundo, que motiva a obra, é: como o Brasil patriarcal e escravocrata deu lugar a um país capitalista, relativamente industrializado, associado de forma dependente ao capital externo, mas, ao mesmo empo, capaz de absorver e dar novo sentido às ideologias e projetos elaborados nos países centrais? A ascensão burguesa e da lógica capitalista nas relações sociais, de trabalho e de produção, que politicamente resultou na abolição da escravatura e na Proclamação da República, não foi acompanhada, mostra Florestan, por uma ruptura com os meios de dominação patriarcal.

O modo de trabalhar e de produzir mudou, mas o controle das massas trabalhadoras continuou seguindo, em boa medida, alguns dos padrões de dominação estabelecidos durante o “antigo regime”. Florestan dá ao produto final desse processo o nome de “regime autocrático-burguês”, em que a revolução brasileira, sob o comando de uma burguesia que soube fundir o velho e o novo, moldaria a sociedade em muitos aspectos, mas manteria um distanciamento estrutural em relação à democracia. Como escreve Gabriel Cohn ao analisar a obra para Florestan, “deixada a burguesia, numa sociedade como a brasileira, solta e à sua sorte, aquela que a leva a conformar a sociedade brasileira à sua imagem e semelhança, não tem como ser democrática, mas sempre estará sob o encanto da solução autocrática”.

Artigo escrito por Haroldo Ceravolo Sereza.
Fonte: "Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados" (Boitempo Editorial),
 de Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco (orgs).


Modelo de Repertório Sociocultural

A partir da análise sociológica do professor/intelectual Florestan Fernandes, é possível compreender como a estrutural social brasileira – organizada de maneira violenta e inflexível - perpetua historicamente a exclusão da parcela mais vulnerável da população nacional.

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